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21 outubro 2017

Dezembro em Paquetá


A manga sem fim
não era curta ou comprida;
nem bufante nem regata. 
Cabia na mão

e era doce e era gostosa.
Renascia, refazia
e era a minha vida
cheia de infâncias,
aquela manga.

29 julho 2017

jalousies etc



JALOUSIES ETC


São janelas, todas elas,
nas quais escondes
- entre tantas fasquias -
as tuas fantasias.


Tuas janelas barrocas, muitas voltas
(gosto: tão pequeno em tua corte)
que convidam, tão pouco litúrgicas,
às mais loucas, infinitas e santas alegrias.
Tuas janelas mouras que sussurram
(escuto: cúmplice de pavores e pudores),
instigando uma guerra santa
que eu, combativo e devasso, desvendo.


Essas madeiras que tentam omitir ao santo
as umidades - segredos de gozos e sumos olorosos -
são tuas janelas barrocas, mouras e bélicas.
Gelosias das sombras e luzes que permites
e eu, bobo e pretenso, me rendo.



02 abril 2017

pé de cachimbo



PÉ DE CACHIMBO
(Alexandre Campinas)

Hoje é domingo, pede cachimbo...


Jesus... Nem posso ouvir isso que tudo volta na cabeça da gente. Quando o Júnior era criança eu falava essas coisas para ele. Que arrependimento. Se eu soubesse...


Foi difícil e é difícil o tempo todo. O corpo vai acabando, sabe ? As coisas de casa vão sumindo. Seu moço, foi o tal do cachimbo. O que era alegria quando ele era menino virou em tristeza sem fim. Vou contar pro senhor, mas não leva o Júnior não. Pelo sangue de Jesus, não leva meu menino. Não é maldade não, é doença mesmo.


(arte sobre foto original agência AFP)


Todo domingo eu brincava com ele. Eu trabalhava até depois do almoço e vinha pra casa. A patroa exigia que eu lavasse as vasilhas antes de sair. Ela dizia que panela suja era coisa de gente porca. Para ela, no caso, a porca era eu, mas isso é outra história.


Só tinha a tarde e a noite de domingo para ficar com meu filho. Então eu chegava em casa, catava ele na rua onde estava com as amizades dele, deitava a cabeça dele no meu colo e brincava disso, dessas historinhas. Outro dia, eu aprendi: não é historinha, é parlenda. Hoje é domingo, pede cachimbo... Até já sumiu da minha cabeça o resto. Não quero lembrar. Olha só como ele está hoje: pele e osso.


Então eu contava pra ele, falava com ele. Tentava dar rumo na vida dele com bons conselhos, mostrava meu exemplo de mulher trabalhadora. Durante a semana quem tomava conta dele era uma vizinha aqui. Mas tomava conta do jeito dela, né ?


Cachimbo maldito. Cachimbo da morte e da dor. Olha ele, seu moço, jogado ali no sofá. Ele roubou, foi ? Desculpa o Júnior. Não foi por mal. É a doença. Ele precisa da pedra pra viver. Não quer mais nada, só cachimbo. Nem frango assado, que uma vez por mês eu comprava quando saia o ordenado. Ele adorava. Ficava todo lambuzado de frango e dizia “hoje pode, né mãe ?  Hoje é domingo, pé de cachimbo...” e eu dizia que não era pé de cachimbo, que cachimbo não tem pé nem mão. Quanto ele roubou, seu doutor ? Foi dinheiro, foi ?  Quanto ? eu pago. Nem que seja em prestação, mas eu pago.  Só deixa meu menino aqui comigo, para eu por ele no meu colo e cantar para ele. Deixa, seu moço ? Ele é bom menino que eu sei. Eu sou mãe, eu sei. Foram as más companhias, o que eu podia fazer ? Tinha que trabalhar...



Não maltrata ele não. Leva direitinho, olha só: ele nem consegue ficar em pé direito. Em pé de cachimbo... Quando ele sai de lá, senhor ? Quando eu vou poder pegar meu menino e trazer para o meu colo ? Deixa eu cantar para ele antes, seu moço ? O senhor não tem dó não ? Não tem filho ? O senhor sabe onde está seu filho agora, doutor ? Desculpa a grosseria. Foi só dor de mãe. O senhor não é mãe, né ? Se fosse, saberia mais dessa dor. Desculpa, doutor. Foi celular que ele roubou ? Toma aqui o meu, leva pra dona.  Não... Leva ele não, seu moço. Leva não... Outra vez ele não aguenta mais. Eles maltratam muito ele lá.


Na rua, também maltratam. É igual cachorro com bicheira. Fora os que batem, amarram no poste. Falam que bandido bom é bandido morto, doutor. O senhor acha isso também ? Eles dizem "tá com dó ? Leva pra sua casa...". Eu levo. Todas as mães levam. Nossos bebês que ficaram doentes e que eles não querem que sarem. Falam da tal meritocracia, doutor, vê se pode ? E ele teve a mesma possibilidade dos outros, teve ? Teve pai e mãe pra ajudar nos deveres ? Casa sem mofo, teve ? Eu tentei, moço, juro que tentei, mas ou eu trabalhava para ele comer ou nós morríamos de fome. Cheios de meritocracia, mas meritocracia não se come, né ? Fala pra mim: o senhor já tomou sopa de meritocracia ? Já saciou aquela fome, que até dói nas tripas por dentro da gente, com uma bela macarronada de meritocracia ?


Ele não vai fazer mais isso não. Eu vou trabalhar dobrado e comprar a pedra pro cachimbo dele. Sei que já não tenho mais nada em casa, mas pelo menos tenho o meu Junior... Eu já não dou conta, senhor. Tenho até cartão de idosa. Peço para Deus levar meu menino com carinho, pra cuidar dele lá no paraíso, entre os anjinhos. O senhor vai levar mesmo, doutor ?



Cuida dele, doutor, cuida...


15 dezembro 2015

PAPAI II

Papai II
(Alexandre Campinas)


"A maior riqueza do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado..."
(Manoel de Barros)

Papai acordava cedo.  Não tão cedo quanto os que acordam muito cedo, porém cedo. No horário de verão, cedo como a escuridão e o silêncio da madrugada, a ponto de  - eu vi algumas vezes – acordar mais cedo do que o necessário para ter tempo de observar a Estrela D´Alva, Vênus, eventualmente em perfeito alinhamento cm Marte e Júpiter. Ele meditava. Talvez pensasse em si e nos seus (era o que eu imaginava) ou no mundo e seus problemas tão humanos e práticos (isso também) ou mergulhar na contemplação de um céu eterno, com Deus (idem), olhando incansavelmente aquilo de que com veneração absoluta dizia: “O que foi, o que é e o que para sempre será”. Acho que gostava daquela rotina entediante: acordar, ver, orar, fumar dois ou três cigarros, levar suas tralhas para dentro, junto com os sapatos que punha ao pé da porta. Tomar banho, calçar-se para sair. Benzer-se e abençoar a família. Aí, era o dia. Era o sol. Campo aberto de lutas.


Só voltava depois das três da tarde. Pés inchados, coluna permanentemente enguiçada. Não reclamava, mas dizia que a vida era dura e que mais duro do que a vida era o trabalho. Tinha fé. Apenas comentava que não era fácil conviver com tantos animais diferentes, saber-lhes os nomes e hábitos e, até mesmo, afeiçoar-se a cada um deles. “Eles são o nosso sustento e este trabalho também me sustenta: a mim e aos meus sonhos de futuro”.


Qual futuro se assim corriam os dias, meses e todos os anos da minha infância ? Vendo papai sair e voltar para suas contas, broncas e livros passei a adolescência e o início da minha vida adulta. Tive filho também, entretanto nunca – até o dia de hoje – havia conseguido entender como é que, na dureza e na rotina, um homem mata seus sonhos dizendo, paradoxalmente, que só assim conseguia alimentá-los cada vez mais.


Hoje, finalmente, entendi. Depois das três, papai não voltou. Fui, então, ao seu encontro. Primeiro, observei de longe. Braços abertos como um ungido crucificado. Dorido de cravos e madeiro. Cheguei mais perto. Apesar da ausência de vida (a alma já não estava mais ali), papai mantinha aquele rosto iluminado, sublimado e eterno. Não se mexia, é claro, em seu ofício congelado de tempos e gestos. Seus pés, enterrados naquele chão de suor.



Restavam, apenas, o sorriso, o sonho e a esperança. Esta última, real e palpável naqueles pequenos brotos que já surgiam nas canelas ressequidas do velho espantalho.



04 setembro 2015

EMPECILHO



EMPECILHO
Papai I, o outro
(Alexandre Campinas)


“...lá vem a Chaleira
lá do Alto da Poeira...”
(Tavinho Moura e Fernando Brant)


Ele voltava. Você joga fora e ele volta. Desgastante. Livrar-se, impossível. Coisa desusada, melhor não aparecer, melhor que todos pudessem esquecer. Não sei quantas vezes eu matei. Matei como barata: sem coroas, nem piedade. Veja só... Era para ter ? Piedade ? Ora...


Tá. Tudo bem, tem a história da importância, do exemplo, da dedicação, do amor, das lembranças de uma convivência que foi feliz. Tem. Isso tem; mas acabou. Fim. Já deu. Em que mundo estamos ? Os tempos são outros. Faço bem, bem o sei. Não fizesse, outro faria. Faz-se e pronto. De resto, fica aí... Nos registros. A gente folheia e vê de vez em nunca. 


Eu jogava e voltava com o dobro de blablablá. Parece até que se recarregava na minha repulsão. Coisa insistente. Irritante. Parecia placa de encruzilhada, sabe ? Sempre indicando:  Cudeburgo 20 Km; Bostolândia 50 Km; Melecópolis 60 Km; Borrachópolis 30 Km.


Daí que prometi para mim mesmo que, desta vez, seria diferente. Não adiantavam as formas tradicionais. O caminhão de lixo já nem pegava mais, deixava assim, no meio-fio. E eu ainda por cima, poderia tomar uma bruta multa municipal. Tem que ter alguma tecnologia.


Piquei e pus, aos poucos, no liquidificador. Pronto. Virou purê. Deu trabalho, como sempre. Demorei muito; perdi o dia. Agora, a massa informe. Nunca mais aquela conversa fiada. Para garantir, enterrei no alto da cidade, pertinho do Cruzeiro. Assim, ficava com Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo.



Nunca mais fui lá. Passaram anos. Outro dia, vendo as fotos da turma do meu filho perto do monte, reparei. Ali. Bem ali, atrás dele, do meu filho. Tá brotando.


Desgraça ! Papai brotou.


30 janeiro 2014

papel de embrulhar peixe




PAPEL DE EMBRULHAR PEIXE
(Alexandre Campinas)

 

A colina amanhece. O silêncio é poético, pleno de cantos de passarinhos e galos. A cidade já ferve com seu trânsito belicoso. A colina passa o café, exalando lenha queimada. A colina não enxerga a cidade. A cidade não enxerga a colina; apenas sabe de sua existência. Há uma topografia acidentada no plano geográfico que  reflete o comportamento humano. Uma bruma rápida paira sobre a colina. Adensa a tensão de uma noite calma. A colina não gosta de noites calmas, noites em segredo. Sabe que é prenúncio de muito barulho. A colina sabe que há disputa interna. Treme, mas teme respeitando a ordem geral. Os passarinhos e galos, não. Desconhecem a lei. Menos ainda os cães, pouco dados ao lirismo. Um latido na colina. Uma resposta. Repentinamente, muitos latidos.

Aos poucos, a colina – ao contrário da cidade contida – vai escorrendo pelas encostas, penetrando a cidade que começa em suas faldas. A cidade doi-se com a invasão, mas necessita. A cidade torce o nariz para a colina que a toma pela manhã e torna a recolher-se às suas alturas ao entardecer. A colina é o coração da cidade. Sístole e diástole. Bombeia a força bruta do trabalho básico para que a cidade possa  ufanar-se das profissões que considera mais nobres. Um tiro na colina. A cidade não escuta. Uma resposta. Repentinamente, muitos tiros.

Em pouco tempo, o que era já não é. O poder na colina tem novo dono. As noites voltarão a ser barulhentas com roncos de motos, bares abertos, samba, funk e choro de criança. A colina, agora, já respira. Extra-oficialmente, o poder público já sabe das mudanças. A subida da colina, só agora, enche-se de polícia, rabecões, bombeiros e ambulâncias. O céu da colina recebe o primeiro helicóptero. Vários virão. Virá a mise-en-scène que a cidade tanto gosta para, também, acalmar-se. A cidade saberá, mais tarde, que pode ficar tranquila por tudo aquilo que ela não viu, nem sabia haver acontecido. Um jornalista na colina. A cidade já escuta. Uma notícia que nasce requentada. Repentinamente, muitos jornalistas na colina.

Amanhã, os jornais venderão mais na colina: pertencimento.

-*-

10 fevereiro 2013

parafilia

Parafilia

Alexandre Campinas


Ele espreitava. Ela sairia. Mais cedo ou mais tarde.  Doentio e compulsivo, ele esperaria horas seguidas. Dias. Sem comer, sem beber se fosse necessário. Quefazer inadiável. O ato em primeiro lugar.



Não precisaria ser um estoico, ela era um relógio. Deixou o modesto prédio do conservatório sem atraso, a violonista. Ela e seu instrumento. Na primeira esquina, aquele animal precipitou-se sobre sua vítima. Mau. Bote certeiro. Presa  fácil.



Arrastou-a para um terreno próximo. Não se preocupou com os passantes. Despiu-a de suas certezas. Arrancou, brutalmente,  de suas delicadas mãos, mãos sensíveis de artista, o instrumento caríssimo. Peça de luthier, feita sob encomenda. Inimitável.



Ainda mantendo seu braço entrelaçado ao da vítima, a besta-fera tirou uma palheta do bolso da camisa e iniciou sua sequência perversa. Fez de tudo com ela. Teló, Gusttavo Lima, Jorge e Mateus, Zezé e Luciano, Luan Santana... Ela gritava, pedia socorro aos transeuntes.



Bruno e Marrone, Edson e Hudson, Rick e Renner, Alexandre Pires, ele era um monstro. Malícia, Katinguelê, Karametade, Gamação. Uma após a outra, as músicas iam enchendo o espaço psíquico da moça, que ainda tentava esboçar reação.



Ao redor da cena tenebrosa, as pessoas já formavam uma pequena multidão. Uma menina batia palminhas. Uma criança...



A violonista, já sem palavras inteligíveis, gemia arrasada. Seu olhar, fio de esperança, ainda buscava na assistência daquele espetáculo de sombras alguma ajuda. Misericórdia. Ninguém.



Ao contrário, todos achavam aquilo muito normal. Eva, Águia, Peixe, Babado, Cheiro, Netinho, Brown. Aê. Eô. Tudo muito normal.



Ela nunca mais seria a mesma.